quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Já conhece ou ouviu falar do famoso computador Watson? Pois é até para ele Veríssimo vem com uma crítica em sua crônica confira:


POLÍTICA

PODER DA INFALIBILIDADE

Ditadores costumam acreditar que junto com o poder absoluto vem implícito, no pacote, os favores que a Providência Divina concede aos reis

Os reis estão mais seguros do que os ditadores no norte da África e no Oriente Médio. No Marrocos e na Jordânia, pelo que se lê, a queda dos reis não está entre as reivindicações principais da rua. A revolta está custando a chegar à Arábia Saudita, protótipo de autocracia absoluta na região, e o poder dos aiatolás iranianos não parece estar ameaçado, por enquanto. Já os ditadores estão caindo um a um, como jacas. Governam como reis mas sem a autorização divina, eram reis ilegítimos. Assim, curiosamente, ao mesmo tempo que dá um belo exemplo de conquista popular de democracia e modernidade, a sublevação endossa, indiretamente, a monarquia.
Constantino, que transformou o cristianismo de uma seita clandestina na região oficial do seu império, escreveu certa vez numa carta que sua conversão tinha sido bem recompensada. “Recebemos da Providência Divina o supremo favor de estarmos eternamente livres de qualquer erro”. Os ditadores costumam acreditar que junto com o poder absoluto vem, implícito, no pacote, os favores que a Providência Divina concede de nascença aos reis, começando pela infalibilidade. Mas não funciona assim.   
                                 
imagem:  Forner. O VALE
Para-infernália. É pura implicância, eu sei. Mas tenho tanta antipatia por toda essa para-infernália eletrônica que, enquanto nos facilita a vida, nos escraviza e nos humilha que vibro a cada notícia de sua desmoralização, por menor que seja. Comemoro cada nova prova de que ela não é infalível. Agora mesmo surgiu um super-computador, chamado Watson, que venceu dois humanos jogando “Jeopardy” na televisão americana. “Jeopardy” é um jogo de respostas que testa a memória e o conhecimento, e a capacidade de Watson de armazenar informação que corresponde à pergunta e enuncia-la antes dos humanos representa um grande avanço sobre os computadores que, por exemplo, derrotavam campeões de xadrez, mas com os quais não se podia ter uma boa conversa sobre filmes, livros, a vida alheia, etc. O Watson não, o Watson sabe tudo. Leu tudo, viu tudo – mas (arrá!) tem uma falha. O Watson às vezes tem dificuldade em contextualizar.
É o que seus construtores chamam de Síndrome de Paris Hilton. Se você alimenta-lo apenas com as palavras “Paris Hilton” o Watson se confunde, não sabe se a referencia é ao hotel Hilton de Paris ou à herdeira maluquete dos Hilton, Paris. E é capaz de ficar mudo para não dar vexame.
Um pequeno defeito para um computador, mas uma grande vitória para a humanidade. Eu não conseguiria vencer um computador nem num jogo de damas mas jamais confundiria a Paris Hilton com um hotel. Ou vice-versa.



VERÍSSIMO, Luis Fernando. PODER DA INFALIBILIDADE. Jornal O Vale. São José dos Campos. 24 de fevereiro de 2011.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

SENSO COMUM

ONDA É: ACELERA E FREIA

Tanto no futebol como na política, pode-se ver que uma direção gastadora sempre é sucedida por uma freadora, exemplo é ver Lula e Dilma


Acontece muito na administração do futebol. Uma direção gastadora é seguida por uma direção austera, uma aceleradora por uma freadora, uma irresponsável  – ou “audaz” na sua própria avaliação – por uma realista.
A gastadora gasta o que não tem, compra times de sonho e deixa o clube num buraco, do qual a austera precisa tira-lo. Sacrifica-se então o futebol pela economia e a sensatez. O que geralmente não dá certo e leva a torcida a pedir audácia de novo, e outro acelerador na direção.
imagem:  Forner. O VALE
A analogia com o Brasil de Lula e de Dilma é quase perfeita. Como a torcida, no futebol, o povo se interessa por resultados, não por contas ajustadas. Os resultados vieram com Lula, as contas ficaram para Dilma. Os resultados foram evidentes – aumento do poder de consumo de quem antes não consumia, mobilidade social inédita, empregos em alta – mas as contas pertencem àquele nebuloso mundo do longo prazo e da estabilidade estrutural, nada menos palpável. Os resultados explicam, em parte, a popularidade de Lula, que ainda crescia no fim do seu governo. Não se sabe como a austeridade afetará a opinião nacional sobre Dilma.
A analogia só não é perfeita porque os ciclos de aceleração e freadas de um clube de futebol afetam o humor passageiro da sua torcida enquanto a decisão de um governo de gastar mais ou menos mexe com a vida de uma nação interna, e não apenas suas vida econômica. A opção de investir ou cortar é uma escolha ideológica do estado, diferente da simples necessidade de evitar a falência ou desmoralização de um clube.
Num país que precisa crescer extraordinariamente a ortodoxia econômica pode ser uma distração. Um governo cuja prioridade declarada é eliminar a miséria do país não pode fazer isso usando uma contabilidade convencional ou calculadora do inimigo. Ou talvez tenha havido um entendimento, um testa a testa, entre Lula e Dilma na transmissão do cargo.
Lula – Você pisa no freio, sai do governo em desgraça e eu volto em 2014 nos braços do povo para acelerar outra vez.
Dilma – Combinado!


VERÍSSIMO, Luis Fernando. ONDA É: ACELERA                                                                                       E FREIA. Jornal O Vale. São José dos Campos. 17 de fevereiro de 2011.
LITERATURA X REALIDADE

COINCIDÊNCIA  OU NÃO?

Criados para nomear um personagem, alguns nomes fictícios podem render muitas histórias para um colunista contar por anos a fio

imagem:  Forner. O VALE
Vá explicar. Uma vez inventei um nome para um personagem de uma crônica e depois me disseram que alguém com o mesmo nome tinha começado a trabalhar na administração do jornal, dias antes. No meu romance “Os espiões” há um personagem duplamente fictício – uma escritora húngara inventada por um personagem inventado por mim – que eu chamei de Ivona Gabor. Recebi uma correspondência com fotos de uma Ivona Gabor de quem eu nunca tinha ouvido falar. Húngara também, mas cantora.
Ata aí, coincidências perfeitamente normais. O nome do cara que começara a trabalhar no jornal não era incomum, e Gabor, graças às irmãs  Eva e Zza Zza, que se destacaram pelo número de casamentos, era um sobrenome famoso. Mas há dias chegou um e-mail de um alemão que mora na Inglaterra querendo saber se eu era autor de uma história que ele tinha lido em “O Estado de São Paulo” publicada em abril de 2000 e chamada “Até onde se sabe”. Confirmei a autoria, temendo que ele exigisse um pedido de desculpas, já que o texto era uma grande bobagem. Mas o que lhe chamara a atenção era o nome do personagem da história: Sandor Krasna. De onde eu o tirara? Inventei, respondi. E ele então me sugeriu que procurasse “Sandor Krasna” no Google. Procurei, e mergulhei num abismo. Se entendi bem, Sandor Krasna era o nome de um personagem num filme de Chris Marker, “Sans Soleil”, um fotógrafo fictício que não aparece, só manda cartas. Mas descobri que “Sandor Krasna” também era um pseudônimo usado por Chris Marker – cujo nome verdadeiro não é Chris Marker. Tudo bem, mas entre as outras referências a Sandor Krasna no Google (mais de 200 mil!) há, inclusive, fotos atribuídas a ele, não sei se na capacidade de personagem do Chris Marker que ganhou vida própria ou de alguém que adotou o nome – se não forem do próprio Chris Marker usando o pseudônimo. Há também citações de frases e teses de Sandor Krasna.
Para um figura fictícia, Sandor Krasna circulo muito. Ou ainda circula.
Nunca vi o filme do Chris Marker antes de consultar o Google. Não sei de onde tirei o “Sandor Krasna”. Meu correspondente alemão acha que não há coincidência, que Sandor Krasna pode ser uma entidade etérea que, de alguma maneira, está nos usando para existir. Não sei. Ele, o correspondente, também é uma figura misteriosa. Diz que aprendeu a ler em português no Cabo Verde. Que faz alguma coisa ligada à segurança da informática. E não quis que eu citasse seu nome nesta crônica. Talvez seja um pseudônimo do Sandor Krasna. Vá explicar.


VERÍSSIMO, Luis Fernando. COINCIDÊNCIA              OU NÃO?. Jornal O Vale. São José dos Campos. 10 de fevereiro de 2011.


VERDADEIRO OU FALSO?

AQUILO QUE NÃO É MEU!

Se a prova fotográfica não vale mais nada nestes novos tempos inconfiáveis, a assinatura muito menos; ‘E se esta crônica não for minha?!’



Tenha paciência, este parágrafo começa com Leon Trotski mas acaba nas peladas da “Playboy”. Quando Trotski caiu em desgraça na união Soviética sua imagem foi literalmente apagada de fotografias dos líderes da revolucionária do conceito de fotografia: além de tirar o retrato de alguém tornou-se possível tirar alguém do retrato.  A técnica usada para eliminar o Trotski das fotos foi quase tão grosseira – comparada com o que se faz hoje – quando a técnica usada para eliminar o Trotski em pessoa (um picaretaço, a mando do Stalin). Hoje não só se apaga como se acrescenta pessoas ou se altera suas feições, sua idade e sua quantidade de cabelo e de roupa, em qualquer imagem gravada. A frase “prova fotográfica” foi desmoralizada para sempre, agora que você pode provar qualquer coisa fotograficamente. Existe até uma técnica para retocar imagem em movimento, e atrizes preocupadas com suas rugas ou manchas não precisam mais carregar na maquiagem convencional – sua maquiagem é feita eletronicamente, no ar. Nossas atrizes rejuvenescem  a olhos vistos  a cada novela. E quem posa nua para a “Playboy” ou similar não precisa mais encolher a barriga ou tentar esconder suas imperfeições.
O “fotoxópi” faz isso por ela. O “fotoxópi” é um revisor da Natureza. Lembro quando não existia “fotoxópi” e recorriam à pistola, um burrifador à pressão de tinta, para retocar as imagens. Nas “Playboys” antigas a pistola era usada principalmente para esconder os pelos pubianos das moças, que desapareciam como se nunca tivessem estado ali, como o Trotski. Imagino que a pistola tenha se juntado à Rolleiflex no sótão da História.
Se a prova fotográfica não vale mais nada nestes novos tempos inconfiáveis, a assinatura muito menos. Textos assinados pela Martha Medeiros, pelo Jabor, por mim e por outros, e até pelo Jorge Luís Borges, que nenhum de nós escreveu – a não ser que o Borges esteja mandando matéria da sua biblioteca sideral sem que a gente saiba – rolam na internet, e não se pode fazer nada a respeito a não ser negar a autoria – ou aceitar os elogios, se for  o caso. Agora mesmo está circulando um texto atacando o “Big Brother Brasil”, com a minha assinatura, que não é meu. Isso tem se repetido tanto que já começo a me olhar no espelho todas as manhãs com alguma desconfiança. Este cara sou eu mesmo? E se eu estiver fazendo a barba e escovando os dentes de um impostor, de um eu apócrifo? E – meu Deus – se esta crônica não for minha e sim dele?!
                                     
VERÍSSIMO, Luis Fernando. Aquilo que não é meu. Jornal O Vale.São José dos Campos. 30 de janeiro de 2011.